‘Mal feito para o bem continua sendo mal’, ‘8 de janeiro não foi acontecimento banal’, ‘ficamos 2 mil anos caladas’: as frases do voto de Cármen Lúcia

A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia apresentou nesta quinta-feira (11) seu voto no julgamento da trama golpista.
Em um discurso marcado por citações literárias, críticas ao autoritarismo e observações sobre o papel das mulheres, a magistrada reforçou que os atos de 8 de janeiro de 2023 foram planejados e tinham como objetivo enfraquecer as instituições.
Com o voto da ministra Cármen Lúcia nesta quinta, a Primeira Turma do STF formou maioria pela condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros sete réus por todos os crimes dos quais foram acusados pela Procuradoria-Geral da República na Trama Golpista.
Os ministros Alexandre de Moraes (relator) e Flávio Dino já haviam votado nesse sentido. Ainda falta a manifestação do presidente da Primeira Turma, Cristiano Zanin.
Veja as principais frases da ministra ao longo do julgamento:
‘O mal feito para o bem continua sendo mal’, diz Cármen Lúcia citando Victor Hugo ao votar no julgamento da trama golpista
‘O mal feito para o bem continua sendo mal’
Ao abrir seu voto, Cármen Lúcia citou Victor Hugo para criticar a tentativa de justificar atos ilegais em nome de supostos objetivos maiores. A ministra lembrou que o escritor francês se opôs ao golpe de Estado de Napoleão III e registrou, no livro História de um Crime, a resposta de um personagem que rejeita participar da derrubada do governo: “o mal feito para o bem continua sendo mal”.
Segundo a ministra, o diálogo narrado por Hugo mostra que mesmo um golpe que alcança êxito continua sendo condenável, porque se transforma em exemplo a ser repetido. “Principalmente quando ele tem sucesso. Porque então ele se torna um exemplo e vai se repetir”, disse a magistrada, reproduzindo a passagem.
Cármen Lúcia usou a citação para contextualizar os ataques de 8 de janeiro de 2023, afirmando que não há justificativa para práticas que atentem contra a democracia. Para ela, os réus da trama golpista buscaram enfraquecer o Estado de Direito sob o argumento de defender o país, mas “a Constituição não abriga atalhos autoritários, mesmo quando travestidos de bem”.
‘O 8 de janeiro de 2023 não foi um acontecimento banal’, diz Cármen Lúcia
‘O 8 de janeiro de 2023 não foi um acontecimento banal’
Ao analisar os ataques às sedes dos Três Poderes, Cármen Lúcia rejeitou a ideia de que o episódio possa ser visto como algo trivial. “O 8 de janeiro de 2023 não foi um acontecimento banal, depois de um almoço de domingo, quando as pessoas saíram para passear”, afirmou. Para a ministra, o episódio foi resultado de um “conjunto inédito e infame” de acontecimentos que se estendeu por meses, inflamando e instigando a prática de crimes.
Segundo Cármen, não se tratou de um ato espontâneo, mas de uma ofensiva planejada para tentar romper a ordem democrática. Ela destacou que a mobilização envolveu estratégias diversas e prolongadas, que visavam enfraquecer as instituições e desestabilizar o país.
“Todos os empreendimentos que espalham os seus tentáculos de objetivos autoritários são ações plurais, pensadas, executadas com racionalidade”, disse a ministra. Para ela, o julgamento da trama golpista não apenas responsabiliza indivíduos, mas afirma que a democracia não pode ser reduzida a um episódio “banal” da vida política.
‘O que há de inédito, talvez, nessa ação penal, é que nela pulsa o Brasil que dói’, diz Cármen Lúcia
‘Nessa ação pulsa o Brasil que me dói’
Cármen Lúcia afirmou que o julgamento da trama golpista é mais do que a análise de crimes atribuídos a Jair Bolsonaro e outros sete réus: para ela, trata-se de um encontro simbólico entre o passado, o presente e o futuro do país. Ao usar a expressão “o Brasil que dói”, a ministra destacou que o processo expõe feridas históricas que ainda não cicatrizaram, como as rupturas institucionais que interromperam o desenvolvimento democrático brasileiro ao longo do tempo.
A ministra ressaltou que a análise ocorre em um momento emblemático: 40 anos da redemocratização e próximo ao aniversário da Constituição de 1988. Para ela, o simbolismo dessas datas reforça a responsabilidade da Corte em julgar de forma justa e firme tentativas de abalar o Estado Democrático de Direito. “Toda ação penal impõe um julgamento justo, e aqui não é diferente”, disse, lembrando que a função do Supremo é proteger as instituições, independentemente de pressões políticas ou sociais.
Ao lado de Alexandre de Moraes e Flávio Dino, que já haviam votado pela condenação de todos os réus, Cármen reforçou a visão de que a tentativa de golpe não foi apenas um episódio isolado, mas parte de uma ameaça estrutural à democracia. Seu voto consolidou a maioria para condenar Bolsonaro por organização criminosa e deixou claro que, para além dos indivíduos, o que estava em jogo era a preservação do pacto democrático firmado há quase quatro décadas.
‘Sempre votei do mesmo jeito’, diz Cármen Lúcia
‘Sempre votei do mesmo jeito’
o reafirmar sua posição sobre a competência do STF para julgar o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete réus, Cármen Lúcia destacou a coerência de sua trajetória no tribunal. Para a ministra, não há espaço para revisões de entendimento motivadas por circunstâncias específicas do processo. “Sempre votei do mesmo jeito. Sempre entendi que a competência era do STF. Não há de novo para mim”, declarou, em um recado direto às defesas que tentam deslocar o julgamento para instâncias inferiores.
A fala da ministra ganhou peso porque veio um dia depois de o ministro Luiz Fux surpreender ao defender a “incompetência absoluta” da Corte para julgar o caso — posição contrária a decisões anteriores do próprio magistrado. Ao marcar sua divergência, Cármen alertou para o risco de casuísmo caso houvesse mudança repentina no entendimento consolidado desde 2018, quando o STF fixou que o foro privilegiado só valeria para crimes cometidos durante o mandato, mas, em 2023, reforçou que ex-autoridades seguiriam sendo julgadas pela Corte quando as acusações estivessem ligadas ao exercício do cargo.
Para ela, rever essa regra agora comprometeria a segurança jurídica e a credibilidade do tribunal. “Acho que seria casuísmo, gravíssimo, que alguns fossem julgados depois da mudança e fixação das competências que já exercemos inúmeras vezes e voltar atrás nessa matéria”, afirmou. Dessa forma, Cármen não apenas manteve a linha de sua jurisprudência, como também se posicionou contra qualquer tentativa de relativizar a autoridade do Supremo em casos que envolvem ataques diretos ao Estado Democrático de Direito.
‘Nós mulheres ficamos dois mil anos caladas, nós queremos ter o direito de falar’, diz Carmén Lúcia a Flávio Dino
‘Nós mulheres ficamos dois mil anos caladas’
A fala de Cármen Lúcia ocorreu em tom bem-humorado após ser interrompida por Flávio Dino, que pediu a palavra para comentar um trecho do livro História de um Crime, de Victor Hugo, citado pela ministra. Com a réplica espirituosa, ela transformou o episódio em uma mensagem sobre representatividade feminina nos espaços de poder, lembrando que a voz das mulheres foi silenciada ao longo da história.
O diálogo entre os ministros gerou risos e quebrou a tensão da sessão, que julga a chamada trama golpista. Dino agradeceu a “gentileza” da colega e afirmou que apresentou um voto curto justamente para ter tempo de debater com os demais. Em resposta, Cármen devolveu outra tirada: disse que, no caso do próximo ministro a votar, Cristiano Zanin, a situação seria mais tranquila, porque “não tem nem a aplicação da Lei Maria da Penha”.
A cena reforçou a postura firme, mas sempre elegante, de Cármen Lúcia, que já é conhecida por intervenções rápidas e carregadas de simbolismo. Ao lembrar os “dois mil anos de silêncio” das mulheres, a ministra deu um recado que ultrapassa o episódio pontual: a presença feminina em cortes constitucionais não apenas garante diversidade, como também reafirma a importância de vozes historicamente marginalizadas no debate público.
‘Estamos em uma sociedade em que as pessoas querem tanto se mostrar mais do que ser’
A ministra Cármen Lúcia destacou que vivemos em uma sociedade em que a aparência muitas vezes se sobrepõe à essência. “Estamos em uma sociedade que as pessoas querem tanto se mostrar mais do que ser, que elas querem mostrar que participaram, que elas fazem, que elas dão um golpe”, disse, ao criticar comportamentos que valorizam a exposição em detrimento da responsabilidade e da ética.
Ela comparou a necessidade de se autopromover a hábitos cotidianos como fotografar a comida, ressaltando que a exposição exagerada cria rastros que podem ser analisados e vinculados a ações ilícitas.
Segundo a ministra, muitos atos que poderiam passar despercebidos se tornam evidentes justamente porque os responsáveis querem registrar e compartilhar cada passo, como se fossem meras “maquetes” de um projeto ou plano.
‘O valor do Brasil porque nós estamos conseguindo ainda preservar o Estado Democrático de Direito’
Ao encerrar seu voto, a ministra Cármen Lúcia ressaltou a importância da manutenção do Estado Democrático de Direito como pilar essencial do país. “Eu acho que o Brasil só vale a pena porque nós estamos conseguindo ainda manter o Estado democrático de direito e todos nós, com as nossas compreensões diferentes, estamos resguardando isso”, afirmou, lembrando que o papel dos julgadores é garantir que a Constituição seja efetivamente respeitada.
Para a ministra, a diversidade de opiniões dentro do Supremo não enfraquece, mas fortalece a democracia. Segundo ela, o trabalho da Corte é justamente assegurar que os direitos e deveres previstos na lei sejam cumpridos, independentemente de divergências individuais. “Só isso, o direito que o Brasil impõe que nós como julgadores façamos valer”, concluiu, agradecendo ao presidente da sessão.
– Esta reportagem está em atualização