Débitos indevidos: queixas de clientes dispararam após 2020, e bancos atribuem a mudança de norma do BC

Débitos indevidos: queixas de clientes dispararam após 2020, e bancos atribuem a mudança de norma do BC


Dados de plataformas de proteção ao consumidor registraram aumento no número de reclamações por cobranças indevidas. Segundo a Febraban, a regra que autorizou uma instituição financeira a fazer descontos na conta de um cliente de outro banco ‘gerou essa externalidade’. Banco Central do Brasil (BC).
Adriano Machado/ Reuters
Serviços de proteção ao consumidor registraram uma disparada nas queixas de clientes de bancos sobre débitos indevidos em suas contas após 2020. Segundo o diretor executivo da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Amaury Oliva, uma mudança em uma norma do Banco Central (BC) pode estar por trás do aumento das reclamações.
A resolução 4.790/2020 permitiu que uma instituição financeira solicitasse inclusão de débito automático na conta de um cliente de outro banco. Antes dessa regra, cada banco só podia incluir débitos automáticos nas contas de seus próprios clientes e era obrigado a ter a autorização deles para isso.
Após a norma, se tornou possível fazer a compensação entre bancos. Já a obrigação de ter autorização do cliente para o desconto passou a ser da outra instituição financeira, chamada de destinatária, e não do banco no qual a pessoa tem a conta.
“O banco, que apenas executa o débito, não pode pedir uma nova autorização. Pela regra [do Banco Central], ele nem deveria”, justifica Oliva.
A instituição também não pode se negar a cadastrar um débito automático na conta do seu cliente, quando isso é solicitado por outra instituição regulada pelo Banco Central, segundo Oliva.
Dados de duas plataformas da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) — Consumidor.gov.br e ProConsumidor — confirmam que, depois 2020, aumentou o número de reclamações por cobrança de serviço ou produto não reconhecido, não contratado ou não solicitado. As empresas reclamadas são bancos, financeiras e administradoras de cartão.
‘Desgaste fica com o banco’
Conforme o diretor executivo da Febraban, a regra do Banco Central facilitou transações e melhorou a integração entre os bancos, mas acabou gerando o que ele classificou como uma “externalidade”, ou seja, um efeito colateral que afeta os bancos, sem que estes sejam diretamente responsáveis pelo problema.
Um desses efeitos, na avaliação de Oliva, é o aumento da demanda judicial para as instituições financeiras representadas pela Febraban. “O desgaste fica com o banco que lançou o débito, que é a instituição que a pessoa tem a relação”, disse o diretor.
O g1 mostrou casos em que a autorização para fazer o débito automático não é comprovada pelas instituições financeiras. Algumas delas chegam a apresentar à Justiça contratos sem assinatura ou com dados de homônimos.
Ao g1, o Banco Central respondeu que os detentores das contas a serem debitadas e as instituições que vão receber o valor debitado são clientes do mesmo banco. Portanto, este deve adotar procedimentos para verificar e compreender a identidade, o perfil e as atividades de ambos, como forma de prevenir crimes financeiros.
Reclamações aumentaram 376%
Na plataforma Consumidor.gov.br, usada diretamente pelos consumidores para registrar queixas, o número de reclamações saltou de quase 12 mil, em 2019, para cerca de 56 mil, em 2021, ano com mais registros. É um aumento de 376%. A partir de 2022, os números começaram a cair, mas ainda se mantiveram cerca de 180% maiores que em 2019, quando não havia a resolução do Banco Central.
Dados da Secretaria Nacional do Consumidor mostram que as reclamações aumentaram depois 2020
Arte g1
Já os dados do ProConsumidor, um sistema de uso interno dos Procons, mostram um aumento crescente de reclamações desde 2020, quando houve 82 registros. No ano seguinte, esse número saltou para 1.553 e chegou a 110 mil em 2024.
De acordo com o Ministério da Justiça, órgão responsável pela Senacon, é possível atribuir o crescimento a diversos fatores, entre eles a ampliação do uso da plataforma pelos Procons de diferentes estados, mas também ao aumento das demandas dos consumidores nesse período.
As reclamações de débitos automáticos sem autorização não são a mesma coisa da fraude do INSS, que está sendo investigada pela Polícia Federal (PF).
No caso dos débitos automáticos, quando feitos nas contas dos aposentados:
os descontos não acontecem na folha de pagamento;
são feitos depois que a aposentadoria cai na conta bancária;
os valores não estão descritos como “taxa de contribuição associativa”;
as empresas, cujos nomes aparecem no extrato, não foram alvos da operação recente da PF.
Bancos dizem que alertam clientes sobre débitos
Segundo Oliva, os bancos têm adotado medidas para reduzir a demanda judicial por conta de débitos automáticos não-autorizados. Uma delas é confirmar com seu cliente se ele reconhece a cobrança e cancelar o débito, se for o caso.
A confirmação é feita por meio de push — um alerta pelo aplicativo do banco — ou pelo cadastro do débito futuro na conta, segundo o diretor-executivo da Febraban, com tempo hábil para que o cliente possa contestar a cobrança, antes de o desconto ser efetivamente realizado.
O aposentado Armando Boechat teve mais de R$ 1 mil debitados da sua conta bancária.
Arquivo Pessoal
Beneficiários do INSS ouvidos pelo g1, no entanto, negam que tenham recebido qualquer alerta de débitos automáticos em suas contas bancárias. Em alguns casos, os descontos das parcelas mensais só foram percebidos vários meses depois.
Foi o que aconteceu com o aposentado Armando Quintanilha Boechat, como o g1 mostrou em outra reportagem. Em 2024, ele notou descontos estranhos na sua aposentadoria, depois que já tinha perdido mais de R$ 1 mil desde julho de 2023.
As empresas que apareciam no extrato da conta do aposentado eram a Paulista Serviços e a Aspecir, que são autorizadas pelo Banco Central e podem fazer pedido de compensação financeira para outros bancos.
Aposentados descobrem débitos automáticos sem autorização
Elas estão entre as 200 empresas com mais processos em andamento no Brasil, de um universo de mais de 1 milhão de corporações, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
As empresas admitem que a principal queixa é de débitos automáticos em conta-corrente, mas afirmam que os descontos são autorizados pelos clientes, mediante documentos assinados ou gravações telefônicas.
Como funciona a compensação entre bancos
Atualmente, há duas formas principais de inclusão de débitos automáticos. A primeira — mais tradicional — ocorre quando o próprio banco tem um convênio direto com determinada empresa.
Um exemplo são as companhias de água e energia. Mediante autorização do cliente, os descontos mensais dos boletos são agendados. Nesses casos, o banco no qual a pessoa tem conta é diretamente responsável pela cobrança.
A segunda forma foi regulada pelo Banco Central em 2020, com a resolução 4.790. Segundo a norma, uma instituição financeira envia uma cobrança a outra, que não tem relação direta com o contrato original.
Essa compensação interbancária pressupõe que o banco que vai receber o valor debitado já tenha obtido a anuência do cliente para que a cobrança seja feita pelo banco no qual ele tem uma conta.