Câmara pode voltar ao sistema de 1988 com votações secretas para autorizar investigações de parlamentares

O presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), colocou na pauta da Casa desta quarta-feira (27) a PEC da Blindagem, que pode retomar o texto original da Constituição de 1988 e permitir que deputados e senadores barrem investigações contra colegas em votação secreta.
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O relator da proposta, deputado Lafayette de Andrada (Republicanos-MG), ainda não apresentou um novo parecer sobre a matéria, mas voltar ao texto promulgado em 88 é uma das ideias ventiladas no Congresso.
O texto original da Constituição dizia que os parlamentares não poderiam ser processados criminalmente sem prévia licença de sua Casa.
Isso significava que tanto a abertura de investigação quanto o oferecimento de denúncia contra parlamentares dependiam de autorização política da Câmara ou do Senado.
A Procuradoria-Geral da República (PGR), diante de indícios de prática criminosa, solicitava ao Supremo Tribunal Federal (STF) a abertura de inquérito.
O STF, antes de autorizar, era obrigado a encaminhar o pedido à Casa Legislativa competente. Somente se a Câmara ou o Senado dessem seu aval é que a investigação poderia ter início.
“Essa exigência criava uma barreira que, muitas vezes, inviabilizava a apuração de responsabilidades”, afirma o advogado constitucionalista Adib Abdouini.
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Outro agravante é que o texto constitucional era genérico e abria espaço para os parlamentares barrarem investigações por qualquer crime, inclusive os comuns, como assassinato.
No caso de flagrante por crime inafiançável a Constituição exigia um rito favorável aos parlamentares: os materiais colhidos pela acusação eram enviados dentro de 24h à Casa respectiva e, pelo voto secreto da maioria de seus membros, Câmara ou Senado decidiam se autorizavam a prisão e a formação de culpa.
O termo “formação de culpa” permitia que se enquadrasse a investigação como a abertura de ação penal contra os parlamentares.
“Chegavam investigações e quando ia para o voto secreto muitas sequer eram votadas. Se engavetaram muitas acusações e investigações”, explica o advogado criminalista Michel Saliba.
Texto da Constituição abria espaço para os parlamentares barrarem investigações por qualquer crime, inclusive os comuns, como assassinato. .
Jefferson Rudy/Agência Senado
Mudança em 2001
Esse modelo, que pode ser retomado pelos parlamentares agora, foi modificado em 2001 pela Emenda Constitucional n.º 35.
Atualmente, não é mais necessária autorização do Legislativo para investigar ou processar parlamentares.
O Ministério Público Federal (MPF) pode instaurar inquérito e oferecer denúncia diretamente ao Supremo Tribunal Federal (STF), que tem competência para conduzir o processo em crimes cometidos durante o mandato e que tenham relação com o exercício da função parlamentar.
Se o crime for anterior ao mandato ou não tiver ligação com as atividades parlamentares, o processo vai para a primeira instância.
A única prerrogativa que existe aos deputados e senadores é a possibilidade de a Câmara ou o Senado, por decisão da maioria absoluta de seus membros, suspender o andamento de uma ação penal já em curso, ou seja, a investigação e o oferecimento da denúncia não dependem mais de autorização, mas o Legislativo pode sustar temporariamente o processo.
Casos concretos
Humberto Costa
Quando ainda vigorava a redação original da Constituição, o então deputado Humberto Costa (hoje senador) foi acusado de irregularidades ligadas a contratos públicos em Pernambuco. O pedido de abertura de investigação só pôde seguir adiante após análise da Câmara dos Deputados, o que ilustra como o processo ficava submetido ao crivo político.
Hildebrando Pascoal (anos 1990)
Deputado federal pelo Acre, Pascoal foi acusado de comandar grupo de extermínio. O STF só pôde dar andamento às investigações após a Câmara autorizar a abertura do processo. Esse caso é lembrado como um dos mais emblemáticos do uso da imunidade parlamentar para retardar a responsabilização criminal.
Julgamento do ex-deputado federal Hildebrando Pascoal em 2009; ele foi condenado a 18 anos de reclusão.
Ascom/TJ-AC
Pós-2001 – Caso Eduardo Cunha (2016)
Já sob a nova redação do art. 53, não foi necessária autorização da Câmara para que a Procuradoria-Geral da República investigasse e apresentasse denúncia contra o então presidente da Casa. O STF recebeu a denúncia e determinou medidas cautelares sem qualquer necessidade de licença parlamentar, demonstrando a efetividade da mudança.
Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara
Ueslei Marcelino/Reuters
Pós-2001 – Caso Aécio Neves (2017)
O então senador (hoje deputado federal) foi alvo de inquérito e de medidas cautelares no âmbito da Operação Lava Jato. Novamente, não se exigiu autorização prévia do Senado para a abertura de investigação. Contudo, o Senado deliberou sobre medidas cautelares impostas pelo STF (afastamento do mandato).
Então senador, Aécio Neves foi alvo de medidas cauteralares pelo STF em 2017 – o Senado analisou as medidas.
Ricardo Botelho/Brazil Proto Press/AFP
Presidente da República
Outra previsão que a Constituição traz, mas que não deve ser alvo dos parlamentares, é a abertura de ação penal contra o presidente da República.
A Constituição determina que, para crimes comuns, a abertura de ação penal depende de autorização da Câmara dos Deputados, aprovada por dois terços de seus membros com julgamento no STF.
Em 2017, por exemplo, duas denúncias da PGR contra Michel Temer foram rejeitadas pela Câmara dos Deputados e ficaram suspensas até o fim do mandato dele como presidente.
Já nos crimes de responsabilidade, o processo também exige autorização da Câmara, mas o julgamento é realizado pelo Senado Federal.
“Em termos de evolução histórica, a Constituição caminhou para reduzir os privilégios parlamentares, facilitando a investigação e o processamento criminal, ao mesmo tempo em que manteve um regime diferenciado para o Presidente da República em razão da relevância institucional do cargo”, afirma Abdouini.