A menos de três meses da COP30, avenida de 13 km que vai cortar floresta em Belém segue em obras e na mira de ação judicial

A menos de três meses da COP30, avenida de 13 km que vai cortar floresta em Belém segue em obras e na mira de ação judicial


COP30 – Avenida Liberdade avança sobre área de floresta em Belém
A pouco menos de três meses da COP30, a construção da Avenida Liberdade em Belém segue como alvo de controvérsia.
Prometida para ser entregue em outubro como solução para os problemas históricos de mobilidade urbana na capital paraense, a obra de 13,4 quilômetros corta áreas de floresta e comunidades tradicionais
O projeto foi anunciado em 2020, mas só ganhou ritmo após a confirmação de Belém como sede da conferência climática mundial. Ele também passa por territórios habitados há gerações por quilombolas, ribeirinhos e povos indígenas.
Embora o governo estadual negue qualquer relação entre a obra e a COP30, o cronograma acelerado coincide com os preparativos para receber líderes mundiais que discutirão, entre outros tópicos, justamente o futuro das florestas tropicais.
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Durante visita ao Quilombo do Abacatal, comunidade centenária às margens do traçado, o g1 ouviu relatos de moradores sobre desmatamento, remoção de nascentes e perda de áreas tradicionalmente utilizadas para extrativismo.
Especialistas também alertam para impactos ambientais irreversíveis com o projeto. Isso porque a supressão de vegetação nativa tem provocado erosão e assoreamento de igarapés que abastecem Belém, enquanto a fragmentação de habitats ameaça espécies da fauna local.
a COP30 e nosso futuro
A obra atravessa ainda a Área de Proteção Ambiental (APA) Metropolitana de Belém, cortando vegetação nativa da Amazônia e margeando o Parque Estadual do Utinga que, segundo especialistas, também terá sua biodiversidade impactada.
Já o governo do Pará afirma que seguiu o licenciamento ambiental, realizou audiências públicas e impôs 57 condicionantes para reduzir os impactos. Entre elas, 34 passagens de fauna, ciclovias sustentáveis e infraestrutura básica para comunidades.
Abaixo, em 5 pontos, entenda:
O que é o projeto da Avenida Liberdade?
Há impactos ambientais na construção?
Quais são as comunidades atingidas e o que dizem sobre a obra?
Houve consulta a quilombolas e ribeirinhos, como manda a lei?
O que diz o governo e quais compensações socioambientais foram negociadas?
1. O que é o projeto da Avenida Liberdade?
Apesar de promessas antigas para aliviar os gargalos históricos da mobilidade em Belém, a construção da Avenida Liberdade passou anos engavetada.
O projeto foi anunciado em 2020, mas vem ganhando ritmo após Belém ser confirmada como sede da COP30, em dezembro de 2023.
Embora tenha sido apresentado formalmente à Assembleia Legislativa do estado ainda naquele ano, com previsão de licitação para 2021, a obra ficou paralisada por mais de três anos.
A solicitação da licença ambiental só foi feita em junho de 2023 e emitida em setembro do mesmo ano, poucos meses antes da confirmação oficial da conferência.
Segundo o governo do Pará, porém, a Avenida Liberdade não faz parte do pacote de investimentos da COP30 e está sendo tocada exclusivamente com recursos estaduais.
Ainda assim, a chamada ordem de serviço, documento que autoriza legalmente o início da construção, só foi assinada em junho de 2024, já depois da escolha da capital como sede do evento.
O governo estadual vê a obra como uma das principais intervenções de infraestrutura para garantir o escoamento do trânsito na Região Metropolitana.
A avenida, com 13,4 km de extensão, foi projetada como um trecho rápido que conecta duas importantes vias que contornam Belém: a Alça Viária, que dá acesso a outras regiões do Pará, e a Avenida Perimetral, que atravessa áreas populosas da capital.
Traçado da Avenida Liberdade.
Arte/g1
O trajeto também corta uma região em crescimento da cidade, onde estão sendo construídos novos bairros e empreendimentos.
A proposta principal é que a nova avenida funcione como uma rota alternativa à BR-316, principal rodovia de entrada e saída de Belém.
Com tráfego intenso e constantes engarrafamentos, especialmente nos trechos urbanos de cidades vizinhas como Ananindeua e Marituba, a BR-316 é hoje um dos maiores entraves da mobilidade na região.
Justamente por isso a previsão do governo é que a nova via reduza significativamente o tempo de deslocamento entre municípios da Região Metropolitana e ajude a desafogar a BR-316.
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2. Há impactos ambientais na construção?
Sim, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, a construção da via já vem acarretando diversos impactos ambientais significativos em Belém, mesmo antes de sua conclusão.
Isso porque o traçado da avenida corta áreas de floresta na Região Metropolitana da cidade, provocando desmatamento, alterações em cursos d’água, fragmentação de ecossistemas e prejuízos diretos a comunidades tradicionais da região.
“A gente precisa entender que toda intervenção de grande escala, como essa, gera impactos não só durante a obra, mas também depois, na fase de operação e uso da via”, explica o professor Valdinei Mendes da Silva, engenheiro sanitarista e pesquisador do Instituto Federal do Pará (IFPA).
Ele destaca que esses efeitos deveriam ser previstos, monitorados e mitigados ao longo de todo o ciclo de vida do projeto. “É fundamental que o que foi diagnosticado no estudo de impacto ambiental não fique só no papel. Mas, infelizmente, as comunidades atingidas muitas vezes nem têm acesso real a essas informações.”
Entre os efeitos já visíveis, Valdinei chama atenção para a supressão de vegetação nativa em áreas de floresta densa, que tem aumentado a erosão e o carreamento de sedimentos para os igarapés da região, pequenos corpos d’água naturais que ainda preservavam características originais da Amazônia.
Máquinas trabalham nas obras da Avenida Liberdade, no Pará, na região do traçado que corta o município de Marituba.
Pedro Guerreiro/Ag. Pará
“A comunidade local percebe logo a diferença. A água, que antes era escura, fria e limpa, passa a ficar barrenta, com sedimentos em suspensão. A luz do sol já não penetra da mesma forma, e isso afeta todo o equilíbrio do ecossistema aquático.”
O g1 visitou o quilombo Abacatal, próximo ao traçado da avenida, e ouviu moradores que relatam insegurança, falta de consulta prévia e temor pela perda de áreas culturais e produtivas (entenda mais no item 4).
Ainda segundo o professor, o assoreamento desses cursos d’água pode, inclusive, afetar o abastecimento de água da cidade de Belém, já que eles deságuam no rio Guamá, que alimenta os lagos Água Preta e Bolonha, responsáveis pela distribuição de água potável para a população.
Para o pesquisador Leandro Valle Ferreira, do Museu Paraense Emílio Goeldi, a devastação na região vai além do que é visível nas bordas da estrada.
Isso porque outro impacto estrutural apontado é a fragmentação de habitat, provocada pela divisão física da Área de Proteção Ambiental Metropolitana de Belém e pelo isolamento definitivo do Parque Estadual do Utinga.
“Eles aterram áreas alagadas onde havia vegetação típica de várzea e açaizais que garantiam renda a famílias ribeirinhas. Isso causa um impacto irreversível. As comunidades perderam parte de seus territórios produtivo”, diz.
Ferreira explica que a fragmentação da floresta altera o microclima local, reduzindo a umidade e provocando a morte de árvores.
“Criar uma estrada no meio da floresta gera bordas que antes não existiam. Isso muda a temperatura, reduz a umidade e mata muitas árvores. Em poucos anos, a floresta ao redor da avenida será completamente modificada.”
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3. Quais são as comunidades atingidas e o que dizem sobre a obra?
Entre as áreas afetadas pelo traçado estão o Quilombo do Abacatal, o Território Ancestral Murucutu Tupinambá e a Comunidade Nossa Senhora dos Navegantes, visitada pelo g1 na última semana.
No quilombo, que existe há mais de 300 anos, vivem hoje cerca de 600 pessoas que cultivam açaí, mandioca e mantêm tradições passadas de geração em geração.
As regiões abrigam populações ribeirinhas, extrativistas e quilombolas que há gerações mantêm um modo de vida vinculado à floresta, aos igarapés e à pesca artesanal.
Na comunidade dos Navegantes, localizada às margens do igarapé Santo Antônio, os efeitos da obra já alteram a rotina dos moradores. “Destruíram as nascentes que a gente usava pra beber água, acabaram com o igarapé, com a nossa rua de água. Era por ali que a gente vendia açaí, pupunha, camarão”, relata Danielson Costa, presidente da associação de moradores.
Segundo ele, uma mureta de concreto de dois metros construída junto à pista impediu o acesso aos terrenos usados para o extrativismo. “A avenida cortou o mato da gente no meio. São terrenos de 300, 500 metros. Agora ninguém passa mais.”
Costa afirma ainda que ao menos dois moradores tiveram suas casas removidas sem que houvesse indenização ou proposta de reassentamento.
Placa da obra no trecho que vai ligar a nova rodovia à Av. Perimetral, importante via de Belém.
Roberto Peixoto/g1
“Eles só chegaram com as máquinas e derrubaram tudo. Não perguntaram se a gente consentia, não perguntaram nada. Nós somos ribeirinhos, extrativistas, somos povo tradicional, mas não teve consulta livre e informada, como manda a lei”, diz, em referência à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
📝ENTENDA: Essa norma protege o direito de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais de serem consultados antes de obras que afetem seus territórios. Também garante indenização justa e reassentamento digno quando há deslocamento. No Brasil, ela tem força de lei desde 2004.
Durante visita a um trecho da obra próximo ao Quilombo do Abacatal, o g1 percorreu uma estrada de terra estreita, ladeada por áreas desmatadas.
Até pouco tempo, segundo moradores, o caminho era sombreado por árvores frutíferas e conectava a comunidade a feiras e pontos de venda de açaí, mandioca e hortaliças.
Hoje, é uma zona de passagem de caminhões e máquinas pesadas, com tráfego intenso e pouca sinalização.
“Essa era a nossa saída para Ananindeua e Belém. Agora dizem que vão fechar e construir outra rota para a gente. Só que ninguém veio perguntar se isso era o que a gente queria”, relata Vanuza Cardoso, quilombola e sexta geração de mulheres do território.
Segundo ela, o quilombo, com mais de 300 anos de existência, se transformou nos últimos anos em uma “zona de sacrifício” cercada por empreendimentos públicos e privados.
“Tem lixão de um lado, subestação de energia do outro. E agora a avenida. A sensação é de estar encurralada.”
Moradora, mãe, avó e liderança espiritual da comunidade, Vanuza conta que a avenida não passa por dentro do Abacatal, mas seus efeitos já chegaram. A comunidade relata atropelamentos de animais silvestres, aumento do calor com o desmatamento e dificuldade para escoar a produção agrícola.
O mesmo sentimento de exclusão é relatado pelo cientista social e indígena Angelo Madson Tupinambá.
A “Eco Rodovia Liberdade”, como foi batizada oficialmente a avenida, cruza diretamente o Território Histórico e Ancestral Murukutu Tupinambá, localizado entre os bairros do Tapanã e de Águas Lindas, em Belém, e a Alça Viária de Marituba.
O traçado corta um importante remanescente de floresta urbana e mananciais protegidos, como o Sítio Arqueológico Engenho Murucutu, tombado pelo Iphan desde 1981.
Para Angelo, a obra ignora não só a legislação ambiental, mas também os direitos territoriais dos povos indígenas.
É uma obra feita sem consulta. A empresa passou de rabeta no igarapé como se estivesse num balneário. Ninguém parou pra perguntar se a gente consentia. Só decidiram lá de cima, se reuniram em gabinetes e vieram executar. Isso é violar direito.
Além da supressão de vegetação e fragmentação de corredores ecológicos, que abrigam espécies como macacos-aranha, preguiças e garças, a comunidade denuncia o apagamento de sua presença na área.
“Antes da avenida chegar, nossa gente já estava aqui há mais de 150 anos. Mas é como se não estivéssemos. Não somos consultados, não somos ouvidos”.
4. Houve consulta a quilombolas e ribeirinhos, como manda a lei?
Segundo a Defensoria Pública do Estado do Pará, o processo pode ter avançado sem ouvir de forma adequada as comunidades da região.
Uma ação civil pública foi ajuizada pela instituição questionando a forma como a obra foi conduzida, especialmente em relação às comunidades ribeirinhas diretamente afetadas, como prevê a Convenção 169 da OIT.
A ação aponta que o projeto pode ter avançado sem garantir a participação adequada das populações locais, o que configuraria afronta a princípios constitucionais e tratados internacionais.
“Não construíram junto com a gente. Eles se reuniram em gabinete, decidiram, construíram e estão executando”, acrescenta Danielson Costa, da Comunidade Nossa Senhora dos Navegantes.
Ainda segundo Danielson, a comunidade apresentou 28 pedidos formais de compensação e medidas mitigatórias, que vão desde apoio para reassentamento até alternativas para manter a produção extrativista.
“Nossa compensação ambiental daria nove milhões e meio. Eles podiam deixar projetos para a comunidade, mas até agora ninguém deu resposta. Nem sobre indenização.”
Até esta semana, não havia decisão judicial definitiva sobre o pedido da defensoria, e o processo segue em tramitação.
Trecho em obras da futura Avenida Liberdade, no Pará.
Marcelo Souza/Ag.Pará
5. O que diz o governo?
O Governo do Pará nega que a Avenida Liberdade esteja sendo construída por causa da COP30 e afirma que o projeto foi concebido em 2020, antes da escolha de Belém como sede da conferência climática.
Segundo a gestão estadual, o licenciamento ambiental foi “rigorosamente cumprido”, com a imposição de 57 condicionantes e realização de audiências públicas em Belém, Ananindeua e Marituba para discutir o traçado e as medidas de mitigação.
Entre as ações anunciadas, estão a construção de 34 passagens de fauna ao longo dos 13 km da via, ciclovias com pavimento ecológico, iluminação por energia solar e implantação de infraestrutura básica em comunidades próximas, como poços artesianos, UBS e quadras esportivas.
O governo também garante que não houve remoções compulsórias e que as famílias afetadas estão sendo tratadas individualmente, com propostas de indenização ou reassentamento.
Em resposta às críticas ambientais, o Executivo paraense argumenta que o traçado foi planejado para acompanhar uma faixa já desmatada por um linhão de energia, evitando supressão adicional de vegetação.
Além disso, afirma que a obra é parte de um novo modelo de desenvolvimento sustentável do estado, baseado em bioeconomia, mercado de carbono e valorização da floresta em pé.
Sobre a ação da defensoria, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) arfima que vai apresentar manifestação no processo “dentro do prazo legal”.
Veja as notas, na íntegra:
Defensoria Pública do Estado do Pará:
A Defensoria Pública do Estado do Pará informa que foi ajuizada Ação Civil Pública, pela titular da 1ª Defensoria Pública Agroambiental de Castanhal – Primeira Região Agrária, questionando aspectos relacionados à construção da Avenida Liberdade, cuja tramitação ocorre na Vara Agrária da Comarca de Castanhal.
A referida ação tem como foco a falta de consulta prévia à população local, especialmente às comunidades ribeirinhas que serão potencialmente impactadas pela obra, em possível afronta a princípios constitucionais e tratados internacionais sobre o direito à consulta livre, prévia e informada.
A Defensoria Pública ressalta que a atuação da defensora pública subscritora da ação se dá no exercício legítimo de sua autonomia e independência funcional, garantidas pela Constituição Federal e pela Lei Complementar nº 80/1994, que regem a atuação da instituição e asseguram a liberdade técnica para a promoção dos direitos fundamentais das populações atendidas.
Ao mesmo tempo, a Defensoria Pública do Estado do Pará reitera que tem como princípio institucional a busca pela resolução consensual dos conflitos, especialmente quando envolvem interesses de comunidades vulnerabilizadas, buscando sempre o equilíbrio entre o desenvolvimento urbano e a proteção de direitos humanos e sociais.
A Instituição permanece aberta ao diálogo com os entes públicos, movimentos sociais e lideranças comunitárias, visando construir soluções que respeitem os direitos da população, promovam o desenvolvimento sustentável e garantam a justiça social.
Governo do Estado do Pará:
A Secretaria de Meio Ambiente, Clima e Sustentabilidade (Semas) informa que a obra da Avenida Liberdade possui licença ambiental concedida após rigoroso processo de licenciamento, com acompanhamento técnico contínuo para controle de impactos. A iniciativa foi debatida em audiências públicas com ampla participação da população e de representantes de comunidades tradicionais da região. Os estudos exigidos foram aprovados pelos conselhos gestores da APA Belém e do Parque Estadual do Utinga. Ao todo, 57 condicionantes foram estabelecidas e estão sendo monitoradas pelo órgão ambiental.
A Secretaria de Infraestrutura e Logística (Seinfra) informa que o projeto foi iniciado em 2020, antes mesmo da escolha de Belém como sede da COP 30. A obra está sendo executada em área já modificada pela ação humana, seguindo o traçado de um linhão de energia existente, onde a vegetação foi anteriormente suprimida.
A obra vai melhorar a mobilidade urbana para cerca de 2 milhões de pessoas, com redução no tempo de deslocamento e mais qualidade de vida. Isso representa 17,7 mil toneladas a menos de CO₂ por ano com a redução do uso de combustíveis fósseis.
Como parte das diretrizes ambientais previstas, estão sendo implementadas soluções de sustentabilidade na infraestrutura da via, incluindo ciclovia, sistema de iluminação com energia solar e 34 passagens de fauna, destinadas a preservar o deslocamento seguro da biodiversidade local.
A Procuradoria-Geral do Estado (PGE) informa que foi citada na ação e vai apresentar manifestação no processo dentro do prazo legal.
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