Guardiões de sementes adaptam grãos para enfrentar seca e garantir alimentos no sertão de PE

Guardiões de sementes adaptam grãos para enfrentar seca e garantir alimentos no sertão de PE


g1 visitou agricultores de Santa Cruz e Ouricuri que conservam sementes conhecidas como crioulas, que mantêm vivas tradições regionais. As sementes do sertão que resistem a secas
Já ouviu falar do feijão trivicía, rasga letra ou barrigudo? Ou da fava orelha de vó?
A diversidade da alimentação brasileira vai muito além do arroz branco e do feijão carioca e só não se perdeu totalmente graças a um trabalho de décadas de agricultores conhecidos como guardiões de sementes crioulas.
A partir da observação e seleção, eles vão adaptando diversos tipos de grãos ao clima de um determinado local. Essas sementes vão sendo guardadas para os próximos plantios e passadas de geração em geração.
É um processo que ajuda a garantir comida na mesa em tempos difíceis, como durante longas secas, além de preservar a cultura alimentar de uma região, de uma família ou comunidade.
➡️ Esta reportagem faz parte do terceiro episódio da série “PF: prato do futuro”, onde o g1 mostra soluções para desafios da produção de alimentos no Brasil.
Em março, o g1 conheceu alguns guardiões de sementes em Pernambuco, como o Chico Peba, agricultor de Santa Cruz que preserva vários tipos de feijões, milhos e outras centenas de grãos nativos da Caatinga ou adaptados ao semiárido.
O g1 também visitou um banco coletivo de sementes que pertence à comunidade de Passagem das Pedras, em Ouricuri (PE), e que funciona por meio de um sistema de empréstimos (veja o vídeo completo acima).
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Sementes que resistem ao tempo
As sementes crioulas não são, necessariamente, nativas. Elas podem ter vindo de outra região, mas acabaram se tornando variedades tradicionais ou locais por terem sido cultivadas por muito tempo em uma mesma área.
➡️Elas não podem ter nenhum tipo de transgenia, processo que ocorre quando genes de espécies diferentes são cruzados.
É o que explica Marilia Lobo Burle, pesquisadora da Embrapa, na unidade de Recursos Genéticos e Biotecnologia.
Os agricultores adaptam sementes ao ambiente onde vivem por vários motivos: para obter plantas mais resistentes a extremos climáticos, pragas, ou mais produtivas.
No campo, eles vão observando e selecionando as plantas com as características desejadas, de forma intuitiva e guiada por saberes adquiridos com a prática e que são transmitidos entre gerações, diz Burle.
“E tem um detalhe: as sementes crioulas são cultivadas sem quase nenhum uso de insumo, de adubação, defensivo. Por quê? Porque elas são cultivadas, geralmente, por agricultores familiares com poucos recursos”, diz a pesquisadora.
É por isso que as sementes crioulas são estratégicas em um momento de extremos climáticos, diz ela.
“Quanto mais sementes nós temos guardadas, melhor para quem vive no semiárido”, conta Chico Peba, agricultor de Santa Cruz, no sertão de Pernambuco.
“Porque as sementes vindas de outras empresas não são adequadas para o nosso clima. Nós não temos chuva suficiente, todos os anos, no período que elas precisam”, afirma.
Chico Peba mostra sementes crioulas, passadas de geração para geração em Pernambuco
Gustavo Wanderley/g1
Autonomia alimentar
A preservação de sementes crioulas também traz autonomia e menos gastos para o agricultor. Hoje, a maioria dos agricultores planta com sementes compradas de outras empresas. Além disso, há programas governamentais de doação de sementes.
Já quem depende do mercado, acaba tendo um custo maior.
“O problema é que, hoje, as sementes estão muito caras e já não se encontram muitas variedades”, diz Ana Cláudia de Lima Silva, professora de Extensão Rural e Agroecologia na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).
Sementes crioulas
Gustavo Wanderley
“O que mais tem no mercado são sementes com alta tecnologia, principalmente transgênicas”, acrescenta.
Variedades perdidas com o tempo
A produção de sementes cada vez mais padronizadas a nível global, com foco em alta produtividade, tem sido responsável pela redução da diversidade de grãos tradicionais.
É o que pensa Alcemar Adílio Inhaia, coordenador da BioNatur, uma rede brasileira de produção de sementes agroecológicas, com sede em Candiota (RS).
“Antigamente, a gente ia no mercado e conseguia escolher entre vários tipos de milho. Hoje, nós só temos o amarelo. Você não acha um milho roxo, um milho preto, colorido. É muito raro e específico”, afirma.
Para ele, isso é prejudicial não apenas à diversidade alimentar, mas também à preservação de tradições.
“As sementes fazem parte da nossa cultura. Os indígenas, por exemplo, faziam várias bebidas a partir de milho. Os quilombolas faziam vários rituais a partir de algumas espécies tanto de milho, de feijão, de farináceos”, comenta.
“Também se comia muito o raditi (uma verdura) entre os imigrantes italianos e alemães. Hoje, na feira, você não acha mais”, conta Inhaia.
Para a pesquisadora da Embrapa, outros motivos explicam a diminuição das variedades de sementes crioulas: as mudanças climáticas, o envelhecimento da população rural, os conflitos de terra e o desmatamento.
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Bancos coletivos de sementes
A preservação de sementes crioulas também acontece de forma coletiva a partir da formação de bancos comunitários geridos por agricultores familiares.
Há experiências bem consolidadas no Brasil, como a do Polo da Borborema, uma rede de sindicatos rurais da Paraíba.
“As primeiras experiências de bancos de sementes comunitários aqui na região do Polo da Borborema nasceram em 1970, mas há muitos exemplos Brasil afora, pelo mundo”, conta a agricultora Roselita, de Remígio (PB).
Os bancos costumam funcionar em um sistema de empréstimos. O g1 conheceu, em março, um exemplo na Associação de Agricultores Passagem das Pedras, em Ouricuri (PE).
Lá, o agricultor que pega sementes emprestadas precisa devolver 50% a mais na época da colheita. Ou seja, se ele retirar 1 kg, precisa devolver 1,5 kg.
Maria Auxiliadora no coletivo de sementes tradicionais da comunidade de Passagem das Pedras, em Ouricuri (PE)
Gustavo Wanderley/g1
“A semente que é devolvida não pode vir com agrotóxico e nem com transgenia”, explica a agricultora Maria Auxiliadora.
“E o nosso banco não serve só à nossa comunidade. Em 2020, por exemplo, nós tivemos uma seca grande e acabamos fornecendo sementes do nosso banco para comunidades de um município vizinho”, conta.
Diversidade para enfrentar secas
Uma outra característica muito marcante do cultivo de sementes crioulas é a diversidade no plantio.
Quando chega a época de chuvas, é comum que os agricultores do semiárido plantem diferentes tipos de um mesmo alimento.
Chico Peba, por exemplo, planta, na mesma época, o milho ligeiro e o milho tardio. O primeiro se desenvolve mais rápido, garantindo a colheita caso a chuva venha cedo. Já o segundo, demora mais para crescer, o que dá segurança se a chuva atrasar.
A agricultora Roselita, de Remígio (PB), acrescenta que plantar vários tipos de alimentos também é uma estratégia para garantir a alimentação.
“Na agricultura familiar camponesa, no mesmo espaço, tem feijão de arranque, feijão carioca, feijão preto, jerimum, batata-doce, fava, milho”, exemplifica.
“É isso o que dá a soberania, segurança alimentar e nutricional para as famílias. Porque se tiver uma variação de clima, a gente não colhe um alimento, mas colhe outro”, conclui.

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