Programas de diversidade estão acabando? Entenda como o movimento dos EUA pode chegar ao Brasil

Empresas como Amazon, Google e Meta encerraram os programas para diversidade e inclusão. Especialistas explicam que o movimento já chegou ao país, mas de forma mais discreta. Fim dos programas de diversidade? Como movimento dos EUA pode chegar ao Brasil
A chegada de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos foi o estopim para que diversas empresas norte-americanas restringissem ou acabassem com seus programas de diversidade, equidade e inclusão (DEI).
Na lista estão gigantes como Amazon, Disney, Google, Meta, McDonald’s e Microsoft. (veja abaixo o que dizem)
Desde que iniciou sua campanha eleitoral, Trump fez ataques aos programas de inclusão. Ao assumir, a situação só piorou. Em janeiro, ele assinou uma ordem executiva que deu fim às agências do governo americano que cuidavam de programas de diversidade e inclusão.
Em seguida, Trump instaurou uma censura direcionada aos sites federais, removendo expressões como gay, lésbica, bissexual, LGBTQ, HIV, orientação sexual e transgênero, dos arquivos públicos.
Também foi assinado um decreto que estabelece como política oficial o reconhecimento de apenas dois gêneros, o masculino e feminino.
Em um balanço das seis primeiras semanas do novo governo, Trump disse, orgulhoso, que “acabamos com a tirania da chamada política de diversidade, equidade e inclusão de todo o governo federal”.
Com a adesão de empresas multinacionais, o movimento se espalhou pelas filiais e subsidiárias das empresas, inclusive no Brasil.
Segundo especialistas ouvidos pelo g1, a tendência de cancelamentos do programas de diversidade pode se intensificar no Brasil, ainda que de forma mais sutil e silenciosa.
Trump determinou o encerramento de programas federais de diversidade e inclusão, considerados “radicais e ineficazes”
REUTERS/Kevin Lamarque via BBC
📈 Números já mostram o problema
Um relatório da McKinsey, divulgado em novembro de 2023, mostrou que empresas líderes nos EUA alcançaram metade dos cargos executivos ocupados por mulheres e 39% por representantes de grupos étnicos históricamente sub-representados.
Apesar do avanço, a média mundial ainda está distante desse cenário: apenas 20% das posições de liderança executiva são ocupadas por mulheres e 16% por pessoas de grupos étnicos minorizados.
Nos conselhos de administração, o índice global sobe para 29% de mulheres e 19% para representantes de minorias. Desde 2015, a McKinsey monitora a relação entre diversidade e desempenho financeiro das empresas.
O estudo aponta que organizações com maior presença feminina na liderança têm 39% mais chances de superar financeiramente os concorrentes. Em 2015, esse número era de 15% — dado que pode voltar a ser realidade com as mudanças impostas por Trump.
No Brasil, um levantamento do Vagas.com revela que as chamadas vagas afirmativas, que reservam postos de trabalhos para minorias, despencaram quase 80% entre junho e dezembro de 2024. Os anúncios feitos por meio da plataforma caíram de 1.798 para 399 vagas no mês.
Só entre setembro e outubro de 2024, o recuo foi de 51%, de 1.210 para 587 vagas. O período, inclusive, coincide com o momento em que Trump intensificou a campanha presidencial, temperada com discursos contra as políticas de diversidade.
Em janeiro, houve recuperação, para 627 vagas anunciadas, mas ainda em patamar muito mais baixo que os meses de janeiro de 2023 e 2024. (veja diferença no gráfico abaixo)
Número de vagas afirmativas anunciadas no Vagas.com entre 2023 e 2025
Arte/g1
O Vagas.com demonstrou preocupação com a diminuição no número de vagas afirmativas nos últimos anos. Segundo Carol Kaphan, porta-voz e responsável pelo marketing da empresa, a tendência é lamentável.
“Acreditamos firmemente que programas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI), além de seu fundamental papel social na construção de uma sociedade mais justa, trazem benefícios concretos para as empresas”, diz a porta-voz.
🤔 A pergunta que fica é: estamos testemunhando o fim dos programas de diversidade? Abaixo, o g1 conversou com especialistas e empresas para responder às seguintes questões:
Como iniciaram as políticas de diversidade?
Porque os programas de diversidade estão acabando?
O movimento pode chegar ao Brasil?
As leis brasileiras são suficientes?
👩🏾🎓 Como iniciaram as políticas de diversidade?
As políticas de diversidade surgiram nos EUA, nos anos 1960. Era a época da luta pelos direitos civis, quando os negros se levantaram contra a política de segregação imposta em alguns estados.
As reivindicações eram pelo direito ao trabalho, fim da discriminação e reconhecimento do direito ao voto. A grande vitória do movimento foi a Lei dos Direitos Civis norte-americana (de 1964), que proibiu a discriminação no emprego com base na raça, religião, sexo, cor e origem.
A partir de 1963, a Lei da Igualdade Salarial estabeleceu que homens e mulheres deveriam receber o mesmo salário ao exercerem funções iguais. Ali surgiram as políticas de cotas nos EUA, inicialmente voltadas para mulheres e negros. Somente nos anos 1970, a comunidade LGBT+ passou a ser considerada.
No Brasil, as primeiras políticas afirmativas surgiram em 1991, quando uma lei determinou que empresas com 100 ou mais funcionários deveriam destinar uma parte das vagas para pessoas com deficiência (PCDs).
Em 2001, o programa de cotas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) foi o primeiro grande modelo a prever vagas reservadas para estudantes negros e oriundos de escolas públicas.
Em 2002, a Universidade de Brasília (UNB) se tornou a primeira universidade federal a adotar cotas raciais, abrindo caminho para a legislação nacional. No setor privado, a Petrobras foi pioneira com um programa de aprendizes com cotas raciais em 2006.
Porém, somente em 2012, a Lei de Cotas tornou obrigatória a reserva de vagas para estudantes de escolas públicas, com subcotas raciais, em todas as universidades federais do país.
Em 2017, com o movimento #MeToo, e, em 2020, durante os protestos “Vidas negras importam” após a morte de George Floyd, as políticas de diversidade e inclusão nas empresas norte-americanas ganharam ainda mais destaque.
“Os movimentos sociais passaram a pressionar as grandes empresas a ampliarem as políticas de diversidade, que cederam e passaram a investir e criar departamentos de diversidade nas sedes”, explica Cláudia Nonato, professora e pesquisadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da Universidade de São Paulo (USP).
A partir daí se espalhou a criação de novos modelos de programas de inclusão no mundo corporativo, que não oferecessem apenas oportunidades de emprego, mas também garanta que essas pessoas possam ocupar cargos de liderança e influenciar em decisões importantes.
Segundo Natália Paiva, diretora do Movimento pela Equidade Racial (Mover), as iniciativas são importantes para ampliar a inclusão de grupos historicamente marginalizados, como pessoas negras e periféricas, também para os cargos de influência nas empresas, com mais poder e melhores salários.
A importância da diversidade é trabalhar com os diferentes. A sociedade brasileira é muito diversa. Por que o ambiente de trabalho tem que ter aquele perfil de pessoas iguais?
➡️ Por que os programas de diversidade estão acabando?
Cláudia Nonato, da USP, afirma que não é incomum que as grandes empresas promovam um alinhamento instantâneo com líderes poderosos. Não custa lembrar que Trump venceu as eleições com ampla margem contra a adversária, Kamala Harris.
“As big techs caminham de mãos dadas com o capitalismo e, por isso, o fim dessas políticas começaram pelas empresas de tecnologia. As políticas de diversidade acabam ficando em segundo plano”, afirma Nonato.
De acordo com a especialista, a maioria das ações de diversidade foram implementadas dentro das empresas por pressão social. Ainda assim, elas trouxeram mudanças, mas não sem incomodar parte dos líderes que ocupavam altos cargos e acabaram perdendo espaço.
“Esses programas estão acabando porque não querem que as minorias decidam. É uma lógica de poder. E já vemos nas big techs, que detém o controle sobre o acesso à inteligência artificial”, completa Cláudia.
O g1 questionou as principais companhias que anunciaram mudanças em seus programas de diversidade.
Em nota, a Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp) disse que não vai se pronunciar. A Disney, Ford e Harley-Davidson não responderam aos pedidos de posicionamento.
A Amazon nega redução de esforços e diz estar atualizando as iniciativas, mantendo o compromisso com equipes diversas. O Google afirma que está revisando os programas devido ao cenário jurídico atual nos EUA, com ajustes conforme necessário.
A Arcos Dorados, empresa responsável pelo McDonald’s no Brasil, afirma que “está comprometida com a promoção de equipes de trabalho diversas”. Já a Microsoft explicou que o foco da empresa em diversidade e inclusão é “inabalável”.
Por fim, a Toyota diz que segue com o objetivo de “criar um ambiente que estimule a inovação e o sucesso, onde todos se sintam respeitados e pertencentes”.
📈 Quais foram os avanços?
Segundo Cláudia Nonato, o ganho real da diversidade está no bem-estar dos funcionários e na pluralidade de ideias, ainda que isso não se traduza em lucro imediato. Por isso, a decisão das diretorias deveria ser de longo prazo.
Inclusive porque, hoje, a diversidade pode estar presente nos níveis mais baixos da estrutura corporativa, mas costuma desaparecer à medida que se sobe na hierarquia.
Uma pesquisa feita pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), em parceria com a Rede Brasil do Pacto Global da Organização das Nações Unidas, destaca que os cargos de alta liderança, direção e gestão em empresas brasileiras ainda têm baixa representatividade.
As mulheres negras ocupam apenas 2,3% das presidências e 10,2% dos cargos na alta liderança, mesmo sendo um dos maiores grupos demográficos do país. Os homens brancos ainda predominam na presidência e conselhos. (veja comparativo abaixo)
Os números da pesquisa Perfil Social, Racial e de Gênero das 1.100 Maiores Empresas do Brasil, feita pelo instituto Ethos, destacam que as mulheres negras são maioria entre trainees, mas que desaparecem de conselhos de administração e diretorias executivas.
Diversidade em cargos de lideranças (em %)
Arte g1
Os dados são um reflexo direto da falta de programas de desenvolvimento e promoção interna voltados a esses grupos. (veja comparativo na tabela abaixo)
Na pesquisa, as próprias lideranças reconhecem três fatores principais para essa baixa representatividade:
➡️ Ausência de programas de liderança que impulsionam esses profissionais para cargos mais estratégicos;
➡️ Ausência de políticas, ações afirmativas e práticas de diversidade e inclusão;
➡️ Falta de qualificação profissional para os cargos de liderança (argumento contestado por especialistas).
Proporção de gênero e cor ou raça por cargo (em %)
Arte g1
Proporção de gênero e cor ou raça por cargo (em %)
Arte g1
Proporção de gênero e cor ou raça por cargo (em %)
Arte g1
Para Juh Círico, pesquisadora em diversidade, equidade, inclusão e pertencimento da Universidade de São Paulo (USP), esse movimento revela que as políticas dessas empresas não eram comprometidas com a inclusão e permanência de pessoas diversas.
“Empresas que compactuam com a agenda anti-DEI estão seguindo suas ideologias e encerrando os programas com a narrativa da necessidade de corte de gastos e redução orçamentária, assumindo os riscos e consequências dessas ações excludentes”, completa Juh Círico.
É um movimento que afeta diretamente grupos minorizados, gerando desemprego, perda de oportunidades, resultando no aumento da desigualdade social e maior dificuldade para o acesso e permanência no mercado de trabalho.
🤔 O movimento pode chegar ao Brasil?
Ana Bavon, especialista em governança e responsabilidade social no ambiente corporativo, afirma que o fim dos programas de diversidade no Brasil deixou de ser uma previsão, mas sim uma realidade silenciosa.
Diferentemente dos EUA, em que os anúncios de encerramento têm sido formais, os programas brasileiros passaram por “reestruturações”, cortes de orçamento e omissão pública.
“No Brasil, não estamos vendo demissões em massa, mas um reposicionamento estratégico. Há redução dos programas, muitas vezes sem justificativa pública. É um desmonte silencioso”, afirma.
Além da pesquisa do Vagas.com, um levantamento da empresa de recrutamento Catho apontou que 65,7% das empresas brasileiras não possuem programa de diversidade e inclusão, e apenas 17,5% pretendem aumentar o investimento nessa área.
Bavon ainda destaca que falta comprometimento da alta liderança, já que CEOs e vice-presidentes evitam associar a própria imagem à pauta de inclusão. Além disso, as empresas se omitem para não comprometer a reputação com promessas que não pretendem cumprir.
A quem interessa manter a desigualdade? Obviamente que não são as pessoas pretas, pardas, mulheres, LGBTQIA+ ou pessoas com deficiência, que continuam sendo empurradas para as margens.
Claudia Nonato, da USP, ainda destaca o chamado “pacto da branquitude”, um conceito social em que pessoas brancas, mesmo sem intenção, se beneficiam ou mantêm coletivamente postos e caminhos de privilégio.
A especialistas exemplifica com o fato de que a maioria dos programas de diversidade foca em vagas de estágio ou trainee, distantes dos cargos de liderança.
“Não há soluções prontas nem fórmulas de longo prazo. O racismo no Brasil é estrutural e demanda educação desde a infância. O letramento racial é essencial nas escolas e empresas”, completa a especialista.
Um levantamento da Diversitera, consultoria especializada em diversidade, equidade e inclusão, revela um desalinhamento entre o discurso institucional e a estrutura de poder nas empresas.
Realizada entre junho de 2022 e março de 2025, a pesquisa analisou mais de 70 empresas de 17 setores da economia. O recorte mostra que a alta liderança segue amplamente homogênea e distante da pluralidade presente nos colaboradores:
♿ Apenas 1,5% dos cargos de diretoria e gerência executiva são ocupados por pessoas com deficiência;
🚺 Mulheres ocupam 35% desses cargos;
👩🏽🦱 Pessoas negras representam 9,7% das lideranças de topo.
As empresas citadas na pesquisa são clientes da Diversitera — ou seja, companhias que estão interessadas em avaliar e fortalecer suas ações de diversidade.
Segundo especialistas, esses dados não são apenas um alerta sobre representatividade, mas um indício de risco estrutural que pode comprometer a própria capacidade das empresas de escutar, inovar e reter talentos.
“Sem representatividade nas decisões, não há boa experiência para o colaborador. Lideranças homogêneas ignoram as dores dos grupos minorizados, o que afeta o clima, a saúde mental e a performance do negócio”, afirma Jaime Almeida, diretor de DEI da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH-SP).
Números da Gupy também apontaram que a maioria das vagas afirmativas divulgadas nos últimos 24 meses são focadas em oportunidades para analista, auxiliar e operador. (veja comparativo abaixo)
A própria Gupy ressalva que a maioria das vagas publicadas na plataforma são para cargos operacionais e de entrada. Mas, em maio, por exemplo, 2,81% das oportunidades para cargos operacionais tinham recorte afirmativo, contra apenas 1,3% das vagas de liderança, como coordenador, gerente ou supervisor.
A empresa notou uma tendência positiva ao longo do último ano: voltando a maio de 2024, apenas 0,45% das vagas destinadas a cargos de liderança eram afirmativas.
A Gupy diz que “não houve quedas em comparação com o ano passado em relação às posições” em sua plataforma e observou que “o Brasil está na contramão dessa tendência, e segue promovendo vagas afirmativas”.
Vagas afirmativas divulgadas nos últimos 24 meses
Gupy/Arte g1
Outro ponto é que mesmo quando há candidatos negros qualificados, empresas optam por outros perfis sem uma explicação razoável. Além disso, algumas multinacionais proíbem a divulgação de vagas afirmativas por imposição das matrizes no exterior.
Com isso, muitas pessoas evitam se candidatar a vagas não afirmativas por receio da rejeição — principalmente após passar por outras experiências negativas. É o que explica Neiva Alves, que atua há mais de 15 anos com recrutamento e faz parte da consultoria Carreira Preta.
“Já levei candidatos escolhidos, e a empresa já tinha fechado com outro, que era branco. Só fizeram bonito para a área de diversidade, mas o gestor fecha com quem ele quer — uma indicação, quem já trabalhou em grandes empresas, ou tem fácil acesso”, explica Neiva Alves.
“Não acho que seja uma barreira às empresas não encontrar profissionais, mas meio que fecham os olhos e deixam quieto. Tem algumas desculpas que você não vê quando se trata de pessoas brancas participando de processos seletivos”, completa a especialista.
⚖️ As leis brasileiras são suficientes?
A lei nº 8.213/1991, determina que empresas com 100 ou mais funcionários devem reservar um percentual de vagas para pessoas com deficiência (PCDs). Esse percentual varia de 2% a 5%, conforme o número total de empregados.
Essa legislação tem como objetivo promover inclusão e garantir oportunidades no mercado de trabalho para PcD. A lei é obrigatória e o descumprimento pode gerar multas e sanções para a empresa.
No serviço público, a lei nº 12.990/2014 determina a reserva de 20% das vagas em concursos públicos para candidatos negros (pretos e pardos). A medida é válida para órgãos da administração pública federal, autarquias, fundações e empresas públicas.
Já a lei 12.288/2010, que criou o Estatuto da Igualdade Racial, proíbe a discriminação no mercado de trabalho e prevê sanções para empresas que a praticam. Embora toda forma de discriminação nas relações trabalhistas seja ilegal, empresas com grande disparidade racial entre seus funcionários podem ser investigadas pelo Ministério Público do Trabalho.
Porém, para os especialistas ouvidos pelo g1, a legislação ainda não é suficiente. Ana Bavon afirma que a falta de uma fiscalização rigorosa e multas faz com que a legislação não seja cumprida. “Precisa doer no bolso das empresas”, completa.
Para Juh Cirico, cumprir com o percentual previsto em lei é o mínimo que as empresas devem fazer. “A verdadeira inclusão vai além do mínimo obrigatório, disponibilizando mais vagas exclusivas para PcDs no mercado e com acessibilidade”, afirma a pesquisadora.
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