Os 4 grupos que mais perderam com cortes drásticos de Milei na Argentina

Os 4 grupos que mais perderam com cortes drásticos de Milei na Argentina


Os drásticos cortes orçamentários do governo Javier Milei reduziram a inflação e eliminaram o déficit fiscal da Argentina, mas causaram séria redução dos investimentos em ciência e saúde e queda do poder aquisitivo de aposentados e pensionistas. A BBC detalha os grupos mais prejudicados pelas medidas do governo. Os protestos contra os cortes orçamentários se multiplicaram na Argentina nos últimos meses
Getty Images via BBC
Desde que tomou posse, o presidente da Argentina, Javier Milei, vem repetindo que, para solucionar os problemas econômicos do país, sobretudo sua eterna inflação, o governo precisaria realizar “cortes drásticos” dos gastos públicos.
O presidente libertário é o primeiro economista a liderar a segunda maior economia da América do Sul. Ele chegou a ilustrar sua intenção com uma ferramenta que deixava muito claro seu objetivo – e ficou famoso ao fazer sua campanha empunhando uma motosserra.
Ao assumir o poder, Milei cumpriu sua promessa.
O governo atual é o primeiro da história da Argentina a apresentar superávit fiscal desde o princípio. Ou seja, desde janeiro de 2024, o país arrecada mais do que gasta.
A ampla maioria dos economistas concorda que o saneamento das contas púbicas foi fundamental para que a inflação caísse de mais de 210% ao ano, no final de 2023, para 47,3% anuais, que é o último número oficial, anunciado em maio deste ano. E muitos esperam que este número continue baixando.
Para este ano, o Fundo Monetário Internacional (FMI) – que acaba de emprestar à Argentina mais US$ 20 bilhões (cerca de R$ 112,9 bilhões), em reconhecimento ao governo de Milei – prevê que a inflação caia para 35,9%.
O FMI também projeta que, em 2025, o país terá o maior crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) da América Latina. A expansão prevista é de 5,5%, que representa mais que o dobro da média da região, de 2%.
Mas os argentinos estão pagando um custo enorme por esta correção econômica. Funcionários públicos perderam seu trabalho com a redução do quadro estatal em cerca de 10%, segundo o governo. E professores não conseguem continuar lecionando nas universidades estatais, devido aos baixos salários.
Isso sem falar no grave estado de muitas estradas e em outros tipos de infraestrutura afetados pela eliminação quase total dos gastos em obras públicas.
Mas existem outros setores prejudicados que protagonizaram grandes manifestações contra o governo argentino. Eles organizaram um protesto conjunto, em frente ao Congresso, na última quarta-feira (4/6).
Quais são estes setores? E por que eles contam com um apoio popular cada vez maior?
1. Médicos
Poucos anos atrás, eles eram os “heróis da pandemia”. Hoje, o setor de saúde pública da Argentina enfrenta um dos piores momentos da sua história.
O maior símbolo da crise é a situação do principal hospital pediátrico do país, o Hospital Garrahan, em Buenos Aires. Financiado pelo Estado, ele oferece cerca de 600 mil consultas e realiza cerca de 10 mil cirurgias todos os anos.
Crianças de todas as partes do país vêm se tratar neste que é o centro especializado em assistência infantil de maior prestígio do país.
Os funcionários do hospital convocaram uma passeata na semana passada e outra na segunda-feira (2/6). Eles denunciam que o governo está “desfinanciando” a instituição.
Os médicos residentes do Hospital Garrahan lideram os protestos. Eles entraram em greve, afirmando que seus salários (menos de US$ 700, ou cerca de R$ 3.950) estão abaixo da linha da pobreza.
Representantes dos cerca de 1,8 mil residentes também afirmaram que, desde a posse de Milei, dezenas de médicos se demitiram para trabalhar em hospitais particulares.
O governo ofereceu um aumento salarial de cerca de US$ 400 (cerca de R$ 2.260) aos médicos residentes, embora ainda não tenha oficializado a proposta. O governo argentino também afirmou que o hospital mantém o dobro de funcionários administrativos, em relação ao número de médicos.
Mas o site de verificação Chequeado refutou esta informação. Citando dados do Departamento de Estatísticas do Hospital Garrahan, o portal demonstrou que quase 70% dos funcionários da instituição trabalham na assistência aos pacientes.
O Centro de Dados do Chequeado afirma que, “durante o primeiro ano de gestão do governo de Javier Milei, as transferências de dinheiro do Estado para o Hospital Garrahan aumentaram em cerca de 10%, em termos reais (ou seja, considerando a inflação), em relação a 2023.”
“Mas, como o orçamento nacional de 2025 foi prorrogado, os fundos para este ano são os mesmos de 2024.”
Na prática, com o aumento dos custos causado pela inflação, isso equivale “a uma queda de 30%, em termos reais, sobre o ano anterior”.
Os protestos dos trabalhadores do Hospital Garrahan são os que contam com o maior apoio da população. Eles geraram incontáveis demonstrações de apoio e uma petição na plataforma Change.org que superou 240 mil assinaturas em poucos dias.
Mas esta é uma dentre várias instituições de saúde pública que estão em crise atualmente na Argentina.
2. Pessoas com deficiência
Outro setor que conta com enorme simpatia popular é o das famílias que possuem pessoas com algum tipo de deficiência. Elas também levaram às ruas suas reclamações contra o governo.
Quando assumiu o poder, Milei ordenou auditorias em massa, que levaram à suspensão de milhares de aposentadorias por incapacidade.
Segundo o governo, trata-se de pessoas saudáveis que cometiam fraudes. Foram mencionados como exemplos os casos de algumas cidades em que um grande percentual da população recebia aposentadorias por incapacidade para o trabalho.
Mas as famílias defendem que o governo usa esta desculpa para reduzir o financiamento da Agência Nacional para Pessoas com Deficiência (Andis, na sigla em espanhol).
Elas também denunciam o congelamento dos valores pagos aos profissionais que cuidam de pessoas com deficiência. Seus ganhos não são atualizados desde novembro de 2024, apesar da inflação de mais de 2% ao mês.
Na última quinta-feira de maio (29/5), familiares e prestadores de serviços se associaram aos funcionários do Hospital Garrahan para protestar em frente ao Congresso argentino. Os protestos prosseguiram na quarta-feira seguinte (4/6), ao lado de outros setores críticos ao governo.
Houve também mobilizações nas províncias, buscando pressionar os parlamentares a declarar emergência nacional no setor.
Esta medida estabeleceria um mecanismo de ajuste mensal, para que os prestadores de serviços recebam pagamentos adequados, e garantiria o acesso a aposentadorias por incapacidade, sem necessidade de contribuição anterior.
Mas o governo já adiantou que irá vetar este projeto, se for aprovado pelo Congresso.
Milei foi criticado não só pelos cortes nesta área, mas também pela sua falta de empatia e seus comentários discriminatórios contra pessoas com deficiência. Ele chegou a usar a palavra “inválido” para desqualificar militantes de esquerda.
“À retirada de financiamento, soma-se a crueldade. Existe um enfurecimento”, denunciou a atriz Valentina Bassi, mãe de uma criança com autismo, à rádio El Destape, de Buenos Aires.
3. Cientistas
Outra área muito atingida pelos cortes dos gastos públicos na Argentina é a ciência.
Nos últimos anos, governos de centro-esquerda (kirchneristas) e de centro-direita (macristas) priorizaram os investimentos neste setor. A Argentina se orgulha de ter produzido cinco prêmios Nobel, mais do que qualquer outro país da região.
Mas a prestigiada ciência argentina foi um dos primeiros setores a sofrer o ataque da afiada motosserra de Milei.
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação foi um dos organismos que ficaram de fora do novo organograma estatal do presidente libertário. Ele reduziu os cargos pela metade.
Esta decisão chegou a levar 68 vencedores do prêmio Nobel a expressar sua “preocupação” com a “dramática desvalorização da ciência argentina”. Agora, os cientistas do país alertam que o governo comete um “cientificídio”, com a falta de investimentos.
No último dia 28 de maio, organizações de cientistas se vestiram de “eternautas”, em referência ao herói dos quadrinhos argentino que protagoniza uma das séries mais famosas da Netflix.
Eles se mobilizaram em todo o país para denunciar a perda de mais de 4 mil postos de trabalho no setor, segundo dados oficiais analisados pelo centro de estudos Economia Política Ciência (EPC).
Um terço destes cargos pertencia ao renomado Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet). O número de pesquisadores da instituição foi reduzido pela primeira vez em 17 anos.
“Entre dezembro de 2023 e abril de 2025, frente a uma inflação acumulada de 204,9%, os salários dos pesquisadores do Conicet caíram em 34,7%, em termos reais”, segundo a Rede de Autoridades de Institutos de Ciência e Tecnologia (Raicyt, na sigla em espanhol).
4. Aposentados
Os idosos formam um dos grupos mais prejudicados pelas políticas de Javier Milei.
O sistema de previdência social representa o maior gasto do Estado argentino. E também foi quem prestou a maior colaboração a esta inédita redução de quase um terço do orçamento nacional, que eliminou o déficit fiscal da Argentina.
Um relatório recentemente publicado pelo Centro de Economia e Política Argentina (Cepa) indica que a perda do poder aquisitivo das aposentadorias e pensões representa 19,2% do ajuste dos gastos estatais em 2024.
O governo do país conseguiu este ajuste “diluindo” as aposentadorias no primeiro trimestre (ou seja, aumentando seu valor abaixo da inflação) e mantendo congelado até hoje o bônus extraordinário recebido pela maioria dos aposentados desde o governo do ex-presidente Alberto Fernández (2019-2023).
Este bônus foi criado como solução paliativa para a perda de poder aquisitivo pelos aposentados.
Com o congelamento, o bônus perdeu grande parte do seu poder de compra. Mas as perdas dos aposentados não se restringem à sua receita.
O governo também diminuiu a quantidade de medicamentos gratuitos oferecidos pela assistência social estatal aos aposentados e pensionistas. Esta medida atingiu ainda mais os bolsos dos idosos, que gastam uma parte considerável dos seus recursos com a manutenção da saúde.
Por tudo isso, os aposentados realizam protestos em frente ao Congresso argentino todas as quartas-feiras. Estas manifestações costumam contar com o apoio de outros grupos críticos ao governo.
Em muitas ocasiões, os protestos terminaram em repressão por parte da polícia, que aplica o “protocolo de segurança” criado pelo governo. As novas normas proíbem o bloqueio das ruas, que era uma forma habitual de protesto no passado.
A passeata da quarta-feira (4/6) buscou pressionar os legisladores para aprovar um aumento das aposentadorias e a prorrogação da chamada “moratória previdenciária” – um sistema criado há duas décadas pelo kirchnerismo, que permitiu que milhões de idosos, principalmente donas de casa, se aposentassem, mesmo sem terem realizado colaborações anteriores.
A última moratória venceu em março do ano passado.
Em 2024, o governo vetou uma lei sancionada pelo Parlamento, que pretendia aumentar o valor mínimo das aposentadorias, ressaltando que qualquer aumento colocaria em xeque seu objetivo de “déficit zero”.
“O sistema estabelece hoje que existe um [trabalhador] ativo e meio para cada aposentado, o que, obviamente, não se pode pagar”, declarou o chefe de Gabinete do governo, Guillermo Francos, à rádio Rivadavia, de Buenos Aires.
“Por mais que pretendam fixar um aumento dos valores, se não houver recursos, não será possível aprovar, de nenhuma forma.”
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